Respeite sua sombra
O amor segue minguado. O sentimento mais piegas do nosso tempo. Quem evoca amor na maré do rancor é visto com certa piedade, com lamento pela sua inocência. Na roda do desespero o amor é muito bicho-grilo, o amor é manso, é calmo demais, é muito paz e amor, o amor é digno de dó. O amor tem sido decepar toda cabeça diferente e assumir um quadrado confortável de figurinhas repetidas. Tensão feridenta.
Em tempos que palavras como: medo, sombrio, insegurança são as mais consultadas no dicionário da cognição, tenho aprendido que a tranquilidade pra criar minha própria realidade parte da capacidade única que tenho de amar. Antes, aprendi que vacilo é receber um tapa e dar a outra face e que coerência é receber um tapa e revidar, certo? Hoje a pergunta que fica é: Qual será a outra face da agressão?
Amor é fácil. Eu amo a filha, amo mãe, amo pai, amo a família, amo a namorada, amo os amigos. Mas amar é difícil, é espinho amar quem me odeia, quem me insulta, quem não me quer ou eu não quero por perto. Ainda que amar, nem sempre significa ficar próximo, nénão?
Quando reconheço a capacidade que alguém tem em me irritar, por exemplo, é um ato de admiração, é reconhecer as qualidades dessa pessoa e isso é uma forma de amor. Muito chão... Esses dias o Garcia de Aracataca me disse que “amor também se aprende”.
No século XVII a Rainha Nzinga de Matamba e Ndongo estudou as estratégias do império português, seu inimigo declarado, pra evitar a invasão colonial na região. Ela foi movimentada pela oposição, mas ao negociar, dominar a língua portuguesa e desenvolver táticas de surpresa, contenção e recuo (ginga), demonstrou que não foi apenas a ridicularização do seu opositor e seu desmerecimento que trouxe êxito aos seus objetivos. Nzinga reconheceu e admirou a capacidade do outro e, de forma sutil, demonstrou amor ao seu inimigo, mesmo desejando vencê-lo.
Em “Vivendo de amor”, Bell Hooks cita que M. Scott Peck define o amor como “a vontade de se expandir pra possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa”. Duas palavras chamam a atenção: “expansão” e “outra”, ou seja, amor é quando possibilitamos expansão (ir pra além do quadrado) e quando expressamos também pro outro (diferente). Será que taí uma das chaves do amor de Nzinga?
Dificil é reconhecer o amor de Malcolm X (o mesmo que ensina a coerência do revide) escrito na carta de sua passagem pela Meca, na Arábia Saudita, em 1964, onde escreveu: “Por causa da iluminação espiritual que eu tive a bênção de receber como resultado de minha recente peregrinação à cidade sagrada de Meca, eu não aprovo mais acusações generalizadas à nenhuma raça … Eu posso declarar com toda a sinceridade que eu não desejo nada além de liberdade, justiça e igualdade, vida e busca da felicidade para todas as pessoas.”
A carta de Malcolm, além de ser pouco comentada, coloca acolhimento e serenidade (formas de amor) em sua ação direta e promove uma consciência expansiva. Reconheço que a carta é difícil de ser destacada como discurso da luta antirracista proposta por Malcolm, pois esbarra na interpretação do “somos todos iguais” e aí mora uma das dificuldades de expressar esse amor.
Mas foi com este discurso que Malcolm voltou da Meca e intensificou o reconhecimento da humanidade dos afro-americanos, inclusive com parcerias de pessoas não negras, e sacou as contradições de algumas lideranças muçulmanas negras (Mooslins), encabeçadas por Elijah Muhammad, até então mentor de Malcolm. Expansão, oferenda de cura...
O amor sagrado de Malcolm relembra a crítica sobre a presença de pessoas não negras em praticas sagradas de matriz africana. No escudo, traduzimos como se algo se apropriasse das energias, mas no sagrado nada acontece sem permissão e se alguém faz presença e bate cabeça na linha dos orixás ou é atendido por suas forças, faz na permissão. Até porque os orixás regem todo o universo e tudo que tá presente neste plano.
Tenho perguntado às pessoas de terreiro se já viram algum orixá, mentor ou guia deixar de atender ou se comunicar com alguém por conta do perfil, caráter ou origem. Se souber de algo, por favor, me diga. Caso contrário tá confirmado que, ancorados na justiça e no respeito, os orixás são forças de amor e acolhimento, que fazem o bem sem olhar a quem.
Capaz que muitas pessoas negras que se identificam com os ideais de Malcolm certamente já fizeram um espelho do porque, apesar do racismo, tem amigos, convivência familiar, de trabalho e ou outros relacionamentos positivos com pessoas não negras.
Na falta de amor por quem vive essas relações, evitamos conversar e refletir esses pontos, nos defendendo e atacando (tensão) com escudos de “isso é palmitage”, “traidor” e rancores afins. Vale dizer que, muitas vezes, o incomodo com uma situação externa revela um desconforto pessoal, um problema exclusivo de quem se incomoda.
O diabo mesmo tá em reconhecer, admirar, acolher e perdoar aquele nomeado como o pior inimigo dos nossos dias, que nesse quesito deixou no chinelo, sem iniciar sua saga de mandatário, tipos como Malufs, Temers e Collors (esses que no meio do furacão foram esquecidos, símbolo de um respiro de perdão e emanação de amor a eles). Mas será que alguém que convenceu, seja como for, uma pancada de eleitores, que deixaram de ser amados por isso, que anulou debates, abusou do zap zap e fez uma estratégia vitoriosa, deve ser visto apenas como patético, covarde, incapaz e tosco?
Será que agora devo deixar de fazer sarau, cortar o cabelo, comprar no mercadinho, no buteco, conversar com as pessoas, inclusive parentes, porque aqui na vila, a partir dos resultados das eleições, não devo, não quero e não tolero conviver com outros pensamentos? Qual face de Malcolm devo espelhar nessa hora, o revide a quem me agride e me fere ou a expansão de consciência em não generalizar uma estrada tão esburacada?
Como será que Rainha Nzinga faria agora? Chacota, medo ou uma estratégia que respeita os pontos fortes do seu algoz? Será que se um dia essa pessoa que ainda não consigo dizer o nome (sinal de falta de amor) quisesse ir num terreiro pra se consultar (sou escritor, posso criar absurdos), ele não seria atendido?
E o regimento sagrado, anunciado anualmente pra conduzir as forças desse mundão sofrerá censura, repressão e não vai atuar por causa de um grão de areia dessa dimensão? Nesse mundão tudo que acontece não é permitido pelo invisível? Será então que permitiram o indesejável? E por isso vou deixar de respeitar, amar e botar fé nas energias que me cuidam e reverencio? Eu sou criativo, sou próspero, sou inteligente, sou saudável, eu e a expansão somos um, um somos nós. Menos tensão. Aprendi que bater cabeça no congá é fazer como o universo: aceita, acolhe, sente pelas treta, perdoa as encruzas, agradece, ama, emana e diz sim. Mais oferenda. Simples assim.