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O funk e o fim da música

 

Artigo reproduzido pelo site do jornal Brasil de Fato 

 

O funk não é pedra na vidraça, é o espelho do real, não é a inversão, é o toma lá da cá, é a música que paga com a mesma moeda.

27/11/2015

 

De Michel Yakini

 

Tenho lido e ouvido debates sobre a qualidade da música brasileira atual, colocando o funk, digo aqui o pancadão/batidão/tamborzão/proibidão/ostentação e afins, como a miséria do gênero. Poética fraca, construção sem complexidade, conteúdo degradado e sem inovação são as principais justificativas pra execrar esse estilo.

 

Sendo do gosto da maioria, principalmente da juventude de quebrada, o funk é colocado no mesmo nível do sertanejo universitário, estilo esse financiado por grandes produtoras, com jabá garantido nas rádios e na TV, com corporações investindo alto, e gente estudada em produzir o refrão-chiclete, um estilo voltado aos rodeios agroboys e casas de shows chiquetosas, com uma intenção de hegemonia estruturada e definida.

 

O funk surge em outro contexto. É o estilo da escassez e ao contrário do sertanejo universitário, que aposta no “menos complexo, mas vistoso”, porque sabe que é isso que a massa consome (porque é pra isso que é preparada), o funk surge da voz embargada, rimando e ritmando com o que pode, e provocando muito, do jeito que dá. O funk deflagra, e isso a retórica não compreende, chama de conformismo, de conformista. O funk não é pedra na vidraça, é o espelho do real, não é a inversão, é o toma lá da cá, é a música que paga com a mesma moeda.

 

O funk nasceu no escadão das mazelas, cantando as contradições, seja do sexismo, da criminalidade e do consumo vendado, na linha do que foi oferecido, e sofre chacinas, leva bala no palco, borrachada e camburão na rua de casa, e a contenção da cela fria na prisão juvenil. Quer mais tensão pra criar que essa? E olha que por aqui ninguém consegue exílio, é cantar e correr o risco. Peço respeito em memória de Duda do Marapé, Daleste, Felipe Boladão, alguns mc´s que foram vítimas desse extermínio.

 

A maioria dos mc´s do funk vem das quebradas, são negros e negras, e se não apresentam uma poética de agrado, é reflexo de pertencer a uma geração da escola sucateada, que mal consegue alfabetizar. Se rimam e cantam é porque trazem oralidade no berço, pois convivem desde sempre com o samba, rap, capoeira, terreiros e o funk que explodiu no RJ nos anos 90, mas que segue vivo na voz de Mano Teko, Pingo do Rap, Mc´s Júnior e Leonardo, entre vários. História da música de favela no Brasil, que sempre foi e é depreciada.

 

Mas esses mc´s não tiveram aula de canto, instrumento, produção musical, nem estímulo à composição criativa, tampouco usufruem de uma estrutura que financie sua visibilidade, e enquanto gerações e gerações de bem nascidos são formados em escolas estruturadas, estimulados a produzir e apreciar arte, essa mulecada rima pra sobreviver.

 

O funk não foi inventado pelos endinheirados da indústria cultural, é uma expressão vinda da urgência, e ao conquistar espaço no mercado, porque a mulecada faz chover na internet, deflagra o ódio dos estetas de plantão, a ira da “sociedade de bem”, e o medo dos conservadores. A juventude do funk ocupa as ruas, deixam as vitrines em choque, o estado perdido e os socialistas eufóricos, mas eles querem curtir um som, namorar, se encontrar, e consumir a negação. E apesar de já ter funkeiro popstar, a gente sabe que a maioria continua na batalha de sempre, rimando e postando na internet, sem disco, sem estúdio, fazendo show quando dá. E por  isso, de repente, todo mundo quis se inteirar sobre o funk, conhecer, abrir espaço, fazer política  pública, tacar pedra, mandar prender, mandar matar, enfim...

 

Há quem contrarie com a velha exceção, apontando as orquestras de favela, a cantora lírica do beco, o violinista da rua sem saída, como exemplos de como apreciar e produzir música conceituada na favela, mas isso não resolve o efeito voraz da meritocracia e do acesso negado que os especialistas ignoram ao arrotar a culpa no funk pelo fim da música.

Aqui não vejo ninguém preocupado em dizer se o funk veio de Kraftwerk, ou de outro som aceito como origem digna pela cultura-gourmet. A gente sabe que a base vem dos atabaques e ritmos africanos, por isso a dança também é próxima, rememora a fertilidade, a circularidade, o movimento da pélvis, o sagrado da tradição feminina, o ato de rimar é uma prática de griotagem, assim como juntar gente pra dançar em comunidade e isso não cabe na formalidade erudita, a não ser na caixa do exotismo. E por mais que essa massa não conceitue seu fazer, os corpos falam e revelam a memória afetiva de nossas origens.

 

E pra quem fica tirando de menor, de sem elaboração, tem que aprender muito de formação de público, articulação e empreendedorismo sem monopólio com essa mulecada, pra quem fala da poética fraca, vem rimar com alguns funkeiros e vê se tem fôlego pra decifrar o dialeto. Pra quem despreza o ritmo, vem dançar o passinho, explodir o corpo pelos quadris como esses meninos e meninas fazem, ou melhor, desfrute da mesma estrutura, viva no mesmo bairro, e tente fazer sua arte elaborada, tocar seu piano em um cômodo que mal cabe um colchão, bora lá, funk you!

 

Por isso, quando a estética da vida for pau-a-pau nos dois lados da ponte, a crítica será justa, a comparação com altas produções terá contexto. Fora isso, a mulecada segue na rua, rimando e sacudindo o conforto das etiquetas, pois o mundão tá desafinado, e enquanto as harmonias prezarem pelo silêncio, o funk há de riscar esse disco e revelar esse descompasso.

 

Michel Yakini é escritor e produtor cultural. www.michelyakini.com

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