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A encruzilhada e a morte o ego

         Faz um tempo que tenho buscado sentidos pro signo da encruzilhada. A questão maior começou quando me deparei com uma cruz dentro de um barco sendo construída no terreiro da minha dedicação e a tremedeira aumentou quando fui escalado pra contribuir na obra, já no acabamento, e fiquei dias refletindo porque fui levado até ali.

       Minha memória com as cruzes, até então, era de um lamento de morte. Entrar nos templos católicos e ver a imagem de Cristo na cruz me lembrava um culto a morte, por isso sempre reneguei. Ver as cruzes como símbolo maior da calunga pequena, sob as lápides dos túmulos, só confirmavam a questão. Cruz simboliza a morte! E isto é coisa que a maioria tem medo.

        Soube pela voz sábia de nossa mãe que o monumento era fruto de um sonho, uma das muitas missões que ela recebe por essa experiência e coloca em prática por respeito e sacerdócio. Disse também que o barco representava a chegada do povo negro durante a colonização.

       Na mesma semana, o conceito da cruz apareceu na leitura de Muniz Sodré, onde ele explica que a cruz simboliza pra alguns povos africanos uma referência dos pontos cardeais e mora aí uma ginga forte da cruz como elemento do sincretismo entre o sagrado cristão e africano no Brasil. Essa ideia também surgiu durante uma prosa com Nelly Denakpo, amiga e produtora que nasceu e vive no Benim. Ela confirmou a tese de incorporação da cruz como elemento da tradição do seu povo em negociação com as forças coloniais

        Ampliei a mirada sobre o navio negreiro, apesar da imagem de dor e sofrimento, quando estudei “O Atlântico Negro” de Paul Gilroy. Neste livro ele explica a importância desta travessia de memórias, narrativas e costumes a partir do encontro e chegança de muitas etnias na diáspora negra, e do quanto esse encontro forçado provocou um câmbio de culturas, emergindo a complexidade do que vivemos e aprendemos sobre África na América. Gilroy afirma que: “Sob a ideia-chave da diáspora, nós poderemos então ver não a “raça”, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem”.

       E mesmo com todas estas hipóteses, se eu me basear no controle dos efeitos ou focar na vitimização dos fatos, não haverá positividade nenhuma pra reconhecer nestas histórias.

      Toda cruz é encruzilhada, e no terreiro esse imaginário tá diretamente ligado a divindade Exu, com sua energia de reverência inicial, abertura de caminhos, guardião da porteira, regente do verbo, da força criativa, do fundamento, da contradição e individuação, onde toda verdade e sentido são plurais e a marca do “eu” é parte significativa e completa da “energia total”, pois como escreveu Rosiane Rodrigues “quem tem Exu não possui karma coletivo”.

          A cruz é mesmo um mistério largo. Numa palestra sobre o conceito “Meta-Humano”, Horácio Frazão chega com outra intenção. Ele representa a cruz, sendo na parte horizontal a vida baseada em instinto, emoção e intelecto (dimensão humana) e na parte vertical a elevação espiritual, baseada em criação, lucidez e paz interior (dimensão do ser), e o encontro desses eixos como a morada do equilíbrio, que simboliza a morte do ego (no conceito quântico ego é um hábito mental mobilizador de negações e resistências). E quando ocorre a integração da dimensão “ser” com a dimensão “humana” frutifica a condição “Meta-Humana” e a partir daí você, simplesmente, é Deus, que cria e conduz seu próprio caminho.

         No conceito da individuação, Exu é presente na energia de todo ser (cada um tem o seu). Na Bíblia explica que “Deus criou os seres humanos com sua imagem e semelhança” e Cristo morre na cruz pra renascer espiritualmente, já Horácio Frazão explica que a “cruz representa a extinção do ego; por isso é associada à ideia de morte”, e por aí esta história de ser Deus faz sentido. E ainda se considerar algumas proximidades entre os arquétipos de Cristo e Exu (mensageiro, sacrifício, criação, verbo), essa premissa pode dar um caldo de sustância.

        São cruzes e encruzilhadas apontando infinitas setas pro campo material, espiritual e de ideias. Por aqui, sigo pedindo licença e agradecendo as porteiras, os cruzeiros e as ruas, porque encruzilhada é poder e multiplicação, é a consciência do criador que habita em mim e em você, e isso é digno de respeito. Minha cara é celebrar (sem medo) a morte do ego, assumir o rumo dos caminhos e acessar merecidamente uma nova realidade.

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