De quando Obatalá pede ajuda a Ogum
“Ele realiza proezas maravilhosas,
Ele é o senhor dos caminhos.
Laroiê!”
março/2016
Por Michel Yakini
Saí de casa às 9 horas da manhã. Mochila cheia de versos e crônicas pra trocar ideia com a mulecada na escola. Era a semana da Consciência Negra. A redução da maioridade penal era a bola da vez nas discussões. Na hora rolou de tudo, comentários senso comum, bom pra gerar debate, alguns conversando sobre relação entre Zumbi e Ogum, outros me perguntando qual era a saída e eu puxando pro texto, pra leitura, pro livro não ser coadjuvante.
E apesar de um novembro, até então, cinzento, voltei pra casa sorrindo, de alma leve. Peguei uma carona com o professor que me convidou e quando chegamos em frente ao buteco do Santista, do lado de casa, percebi que toda a rua olhava pra mesma direção. Era hora da saída da escola. Algumas palavras pipocavam soltas, do tipo: muleque, faca, briga.
Umas cinco viaturas zarparam em direção ao alvo. Muitos me olhavam quase me perguntando o que fazer. E fui até o fuzuê com um sentimento de incapacidade no peito. Encruzilhada.
Na frente da farmácia havia um menino pretinho de uns quinze anos com a mochila nas costas, uma faca na mão ameaçando e dizendo coisas confusas. Senti vontade de chorar. Poxa, tinha acabado de vir de um adianto com os jovens e me deparo com um menino procurando chão na bainha de uma faca.
Um enxame pousou em mim. Um ruido violento, um comichão na pele, sobre policiais cercando, dele se machucar ou atacar alguém, da mãe dele, amiga dos tempos de escola, chorando por sua calma, da porta da farmácia baixando. Tinha racismo e bullying envolvido na história, questão mental a ser acompanhada, isso soube depois, mas o que eu podia fazer agora?
Lembrei das palavras do Senhor Mensageiro que, certa vez, enquanto me ensinava um jeito sereno de conversar com minha filha, disse: “...Toda guia é como um apito, quando você precisar de socorro, se lembre de assoprar, que o pai vai te socorrer...”. E antes da lágrima vencer, segurei firme na minha conta branca, fechei os olhos, mentalizei os conselhos de Exu, e pedi pra Obatalá acalmar a situação, guardar a luz daquele menino.
Algumas pessoas foram se aproximando, o menino chorando, falando alto, e a polícia pronta pra atacar. Obatalá falou baixinho no ouvido de Exu, pedindo que lavasse um recado a Ogum. Exu se curvou levemente pra ouvir e saiu no meio da multidão, correndo, sorridente e voltou num pulo, acompanhado de Ogum, que montado em seu cavalo, e vendo o que acontecia, concentrou força na sua regência.
Eu continuava de olhos cerrados. E em meio à prece, choro, grito, silêncio... perto do pior acontecer tilintou um barulho de faca no chão. Abri os olhos, a família se aproximou, o menino desmaiou sob sua mochila e Obatalá lhe ajudou a deitar prestando atendimento e lhe cobrindo com um pano branco.
Respirei fundo, aliviado, senti vontade perguntar pra minha amiga se queria ajuda, se já tinham chamado o SAMU, de abraçar ela, mas fui pra casa. Olhei da janela e em minutos aquela eternidade de pânico, trânsito parado e burburinhos, cessou. E na certeza que muitos vibraram a favor, agradeci aos encantados por guardarem a vida desse menino e de toda gente ali. Enquanto na rua, Ogum, sério, balançava a cabeça em sinal afirmativo e Exu, reconduzia o movimento e gargalhava de fazer gosto.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural