A dança do bambu e do vento
De Michel Yakini
Dia desses, um amigo ligou e, entre uma prosa e outra, falou de um segredo. Contou, mas pediu que não fosse revelado, pois podia comprometer seu ceticismo. Achei graça, por ouvir alguém dizer que temia que alguém não acreditasse na sua falta de crença.
Falta de crença talvez seja exagero, na verdade meu amigo não crê em histórias sem uma explicação materialista, não crê no invisível, nas forças energéticas e afins. O receio dele pode ser o quanto essa mudança de consciência vai questionar a si próprio, levá-lo a reconhecer um universo maior do que ele cria e dá conta no momento.
Já basta o universo material com um tempo infinito, um espaço infinito e suportar uma dor tremenda pelo peso disso tudo, imagina ainda considerar o infinito de outros mundos, de muitas dimensões, de energias que não podem ser fotografadas, tocadas e medidas a olho nu?
E, além disso, saber que essas realidades convivem simultaneamente, e pertencem a mesma energia, a uma complexa unidade de movimentos multidirecionais. Parece muito pra nossa carcaça, nénão?
Quem sabe o conflito maior seja se relacionar com essa imensidão sem permitir ser uma imensidão. Um abraço fica incompatível se estamos de braços cruzados, vigiando distância, se não gostamos de fazer essa conta onde um mais um é igual a um. Abraço pede imersão, unidade, consciência de junção, de troca. E por mais complicado que pareça, um abraço bem-dado (e consentido) é um ato libertador.
Agora, acessar o oceano como pedra, querendo ser como água, vai parir dificuldade. Uma pedra nunca vai ser água se continuar no seu estado comprimido, tensionado, duro. Pode estar, mas não será um oceano.
Um corpo enrijecido, duro feito pedra, se mantido nesta situação por muito tempo, gera dores e impedimentos, cria uma defesa intransponível, e só um músculo relaxado tende a compor um corpo diluído, aberto a recepção, sem dores, propenso a outras sensações.
Mas como relaxar se a pressão exige desconfiança até da própria sombra, quando vivemos inseguranças que determinam a cara fechada como prevenção e defesa contínua, quando a única certeza palpável é resistir?
Li um provérbio ancestral, escrito num ilê, que diz: “O vento não quebra uma árvore que se dobra”. Toda árvore sobrevive pela dança, pela ginga, por saber de céu e de chão na mesma medida, porque proseia com o vento, mesmo que ele não tenha rosto, mão e peso bruto (há quem garante que tem).
E ainda que meu amigo continue resistente e não encare sua desconfiança sobre o próprio ceticismo, foi bacana receber sua ligação, no telefone celular, que propaga nossa voz de um aparelho a outro sem nenhum fio conectado, sem nenhuma matéria conduzindo. Não carece ver pra acreditar na conexão, certo?
Quando muleque eu olhava o rádio e pensava que os músicos moravam dentro da caixa, no falante, e sentia vontade de abrir pra ver alguém tocando sax, violão ou um repique de mão lá dentro. Só depois descobri que tudo é onda, frequência modulada, é o invisível canalizando acordes na sintonia da rádio.
Por isso meu amigo só precisou canalizar a energia das ondas, por meio de um número e alguns falos erguidos por aí, e assim eu atendi, disse alô e prometi não contar seu segredo a ninguém. Bastou ele crer que nossa voz entrou em fusão com o mar do mundo e navegou pelo vento de um biri-biri a outro. Pronto! Ficamos imensos, imersos e nem doeu nada.
Na prática, estamos em fase e relação constante com energias, frequências e ondas invisíveis (mesmo quando ignoramos), mas pouco refletimos essa questão. Vivemos como se somente o sólido e o material influenciasse a gente, vai vendo… e quando o celular toca e a rádio sintoniza canalizamos a força energética transmitida pro esses aparelhos e ao mesmo tempo ignoramos o quanto a antena do nosso corpo pode sintonizar, atrair e afastar a energia que bem criamos e queremos, mas pra quem tá guardando segredo acho que já disse muito. O papo é longo e contínuo, aprendi que beberage de floral é melhor a conta gotas. Então encerro aqui pra não vazar a confiança do meu amigo e manter a onda desse segredo somente entre nós.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural. www.michelyakini.com