Chamego negro
Crônica reproduzida pelo site do jornal Brasil de Fato no link - http://brasildefato.com.br/node/32253
13/06/2015
Por Michel Yakini
Mano, por favor, quando eu for embora avise seu patrão pra ele deixar essa cara de desconfiado de lado e não ficar olhando de rabo de olho enquanto a gente tá comendo. Sei que ele não tá acostumado a ver um casal negro colar aqui na madruga...
Ele imagina que gente como nós, a essa hora do sereno só pode estar: 1. Dormindo, pra acordar cedo e ir pro trabalho; 2. Trabalhando em algum local que funcione 24 horas; 3. Tramando um assalto na padaria.
Deve ser uma confusão não ver ninguém igual a nós em outras mesas, sorrindo pra vida e curtindo um chamego-negro. Ainda mais quando nosso perfil só se equivale aos empregados desse senhor com cara de menino bem nutrido a leite ninho. Aliás, avise que foi deselegante ele chamar os seguranças pra ficar ouvindo nossa conversa. E mais ainda ver a polícia chegar na sequência, disfarçando, enchendo o prato no bifê e curiando nossa prosa.
Na boa, diga pra ele, que o pior mesmo foi ele ter mandado vocês nos servirem em copos de plástico, e dizer que não estavam mais atendendo as opções do cardápio. Que feio... Mas diga isso depois. Porque não vou reclamar, e ficar de louco no rolê. Tampouco vou a polícia, denunciar e ficar ouvindo que “deve haver algum engano” ou que “foi apenas um mal entendido”.
Tô de boa de esquizofrenia sugerida e vitimismo invertido. Dessa vez eu só queria um lugar vazio na madruga, pra ficar de boa com meu chamego-negro. Mas não adianta ficar aqui explicando pro seu patrão, porque somente nós, meu bom, sabemos o que acontece nessa joça. Por isso, diga depois. Assim, a gente se esquiva da tiração, entrega essa demanda ao sagrado, e se concentra no carinho que tanto nos afaga e consola nas noites de inverno.
Quem sabe, esse senhor com cara de menino bem nutrido a leite ninho, não seja tão deselegante da próxima vez. E se não mudar de opinião que saiba ao menos disfarçar e respeitar nosso direito de sentar, comer, beber e chamegar no sereno. Sei que se pá, você nem vai dizer, pois pode perder o trampo, ao menos que esteja a fim de despedir seu patrão.
Falo contigo porque nessas horas você é um dos poucos que pode me entender, cê tá ligado... Obrigado e até mais meu truta, nos vemos no asfalto, já que aqui eu e meu chamego não voltaremos nunca mais. Pois hoje é a noite do amor, e não vou deixar que ninguém derrame nosso banho de carícias. Definitivamente Sr.Racismo, hoje não!
Michel Yakini é escritor e produtor cultural